Na hora de pôr a mesa éramos sempre dois: eu e tu. Até que, desgastado pelo tempo, te foste esquecendo de te sentar comigo. O teu prato, talher, copo, em todos os meus gestos repetidamente iguais, eram teus e daquele lugar vazio. Quando me sentava, aquilo que via era o teu rosto difuso na sombra do prato. O silêncio, interrompido apenas pelas notícias que não ouvíamos pois deixávamo-nos levar pelo atemporal dos nossos lugares, à medida que o tempo ia retalhando e esboroando as nossas almas, corroídas já pelo cansaço de sermos. De sermos nós. De sermos eu e tu na hora de pôr a mesa.
Uma e outra vez fomo-nos esquecendo de rir. Abríamos a porta ao nosso silêncio, entrávamos, sentávamo-nos com ele à mesa. Assim, na hora de pôr a mesa, passámos a ser quatro: eu, tu, o meu silêncio, o teu silêncio.
Aquele lugar ainda existe. O teu olhar, embora morto no prato vazio, esconde a saudade em que, na hora de pôr a mesa, éramos efectivamente dois. E dói ver-te assim, morto, num prato vazio.
As noites foram crescendo, como que perpetuadas num tempo que girava eternamente sobre si, como se o pêndulo do próprio tempo se tivesse suspendido numa isocronia agora morta.
Num canto, os teus brinquedos, cobertos com um manto de pó cinzento, à espera de serem sepultados num funeral à chuva. Ainda lá está o teu cavalinho que, de quando em vez, ainda oscila, como que puxado pela tua vontade de a ele voltar.
Na hora de pôr a mesa éramos dois: eu e a tua solidão em mim. Fui-me habituando à tua ausência até que, um dia, na hora de pôr a mesa, era apenas eu. Tu quiseste sentar-te mas o teu lugar já estava morto e eu, só nesse dia, o percebi.