Era um dia como todos os outros. O pastor, que andava espantado de existir, sentou-se à porta da igreja a ouvir o coro de vozes desalinhadas que mais parecia o trinar ensurdecedor de pássaros acabados de nascer. A Zara, uma cadela grande, gorda, deitada de costas, ostentava o seu ventre inchado de vida.
Do outro lado da aldeia as gentes ainda dormiam. Em contrapartida, o pastor de todas as madrugadas há muito que despertara.
No centro da aldeia havia um reboliço incomum naquela manhã suicida. Dizem que foi encontrado um homem morto lá para os lados do rio. O seu semblante desfigurado não deixava reconhecer tão morto homem e todos, por conseguinte, se interrogavam acerca da sua identidade.
O céu parecia querer explodir de azul enquanto os pássaros esvoaçavam felizes por sobre as casas. De dentro da igreja o som do coro deu lugar a um gemido de vozes que rezavam em uníssono umas palavras sem nexo, como se deus existisse e, a existir, pudesse salvar o mundo.
O pastor levantou-se pois aquela ladainha exasperava-o. A cadela levantou-se também e seguiu-o arrastando o seu corpo pesado da vida que gerara, com o olhar fixo no chão que pesadamente ia pisando. O corpo morto do homem incógnito ainda permanecia junto ao rio. O pastor teve curiosidade, como os demais, em olhar o desconhecido que a corrente trouxera àquele lugar.
Acercando-se do resto que sobrou daquele alguém, o pastor deteve-se mudo, com um olhar mais morto que o homem morto, a ver aquela figura do homem que já foi homem e duas lágrimas grossas caem no pêlo da cadela que se encontrava deitada a seus pés. O pastor reconhecera no sorriso que aquele homem ainda mostrava o rosto que estava por trás da morte. E gritou, no seu mais profundo silêncio, a dor que estava exposta diante de si personificada no corpo morto do seu pai.
Perto de si, um outro grito, um grito de vida, mostrava alguns cachorros ensanguentados, e a cadela, com o olhar ferido, suplicava repouso.