Vivia desorientada. Por isso, foi a um estúdio de arte corporal e adquiriu sua primeira tatuagem: uma bússola, gravada bem no meio das costas.
Verdade que não apontava para o Norte e sim para onde quer que ela se virasse. Mas pareceu funcionar; sua auto-sugestão era forte. Seu senso de espaço melhorou muito.
Gostou da experiência. Nunca mais parou.
Notou que vivia sem tempo para tudo. Então, tatuou uma ampulheta ao longo da panturrilha direita. O bojo superior da peça foi desenhado cheio e jamais se esvaziava. Nunca mais faltou-lhe tempo.
Morava só, em silêncio. Quis ter um bicho de estimação, mas o gato fugiu e o canário morreu (antes de o gato ter fugido). Então, mandou tatuar um jaguar e uma arara – não fazia mal ser hiperbólica nessa hora. Fez também um lobo, um cavalo, uma baleia narval. E desde então não teve dentro de si mais nenhum silêncio constrangedor.
Mas ainda sentia-se só. Faltava companhia humana. Por isso, tatuou um rapaz viril, um velho paternal, um divertido menininho. Fez também a mãe já morta, a irmã que não teve, a avó que não conheceu. O casal de filhos – gêmeos – que nunca pariu.
E, como os humanos nada são sem seus mitos, mandou espraiar uma sereia na coxa, onde ainda havia espaço; uma fada a voar no braço; um unicórnio empinado no tornozelo.
Um dia, entendeu que, a cada ausência que preenchesse com tinta, outra lhe surgiria. Sempre haveria lacunas em sua vida. Mas no corpo já não havia nenhuma. A pele era espaço finito.
Agora, ela era uma coisa circense, inumana, causando sustos pela rua com o universo vivo na derme.
Percebeu que o que lhe faltava verdadeiramente era a emoção. A aventura. Mais que pintar na pele o mundo todo, ganhá-lo – e ser dele.
Então, assinou contrato com uns japoneses para que a esfolassem após a morte e vendessem sua pele esticada em abajures exclusivos, milionários. Recebeu alguns milhões de euros por isso e foi viajar.
Gostou da experiência. Nunca mais parou.
Pois desde esse dia, dinheiro, pelo menos, nunca mais faltou.
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