Da janela nada se vê além dos contornos dos prédios sob a chuva. Feita de pedaços aéreos, desiguais, mais poeira do que chuva, ela voa na horizontal. Desafia as noções de como deveria ser. Assusta pelo movimento insólito, irreal. Vez por outra ruge com mais força, raivosa, como se disposta a pôr abaixo este prédio.
Aqui, um estúdio de arte, olhos apertados, luzes falhando. Lá fora, um mundo branco, submerso num rio que corre pelo ar.
Quando o vento se cansa o branco se dissipa, fica o cinza, o negro, o fundo da rua. Não vejo mais os paralelepípedos. Já não há calçada. Motoristas se apressam, tirando seus carros do acostamento inundado para sabe-se lá onde. No estúdio, burburinho; lá fora, trovão. Há quem ria nervosamente, camuflando-se com piadas. Aqui é São Paulo. Se não chover de manhã, chove de tarde. Outros confessam o medo, murmuram baixinho. Preciso pegar as crianças da escola. Como é que nós vamos para casa?
A luz vacila. Um olho cansado que se fecha e não se abre mais. No meio da tarde, o escuro da noite. A água continua subindo.
Estamos todos nas janelas, namorando apavorados o novo mar que devora a cidade, quando ele entra na sala:
- Melhor chamar logo a arca que essa porra não acaba hoje!